"...a AIDS é a apresentação clínica de resultados laboratoriais que indicam deficiência imunológica, decorrente da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), levando em média de 8 a 10 anos para se manifestar."
A síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) foi primeiramente descrita nos Estados Unidos, no início dos anos de 1980 e se disseminou pelo mundo. Logo no início, a doença passou a ser categorizada como fatal, e atribuída a alguns segmentos, denominados de “grupos de risco”. Dessa maneira, o complexo HIV/ Aids tornou-se um dos maiores desafios da saúde pública nas últimas quatro décadas. Segundo Christo, Géo e Neves (2014) a AIDS é a apresentação clínica de resultados laboratoriais que indicam deficiência imunológica, decorrente da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), levando em média de 8 a 10 anos para se manifestar.
O complexo HIV/Aids convoca a sociedade para uma profunda reflexão a respeito da diversidade humana, dialogando sobre temas tabus como sexualidade e morte que, como afirma Dejours (2017), apesar de estarem na gênese de aspectos emancipatórios dos indivíduos, podem suscitar um profundo mal-estar. Assim, quando os pacientes recebem esse diagnóstico carregado de estigmas, sentem emergir, em seu universo subjetivo, os mais diversos questionamentos relacionados à doença, principalmente no que tange ao seu futuro e ao seu lugar de sujeito no mundo. A imersão nessa nova realidade transforma os seus modos de ser, de se relacionar consigo e também altera sua relação com os outros, sendo comum a presença dos estigmas de fraqueza, imoralidade e isolamento. Tais estigmas desencadeiam diversos tipos de sofrimento, como destaca Susan Sontag (1989) em sua obra inaugural sobre as metáforas relacionadas à AIDS.
Dessa maneira, o diagnóstico de HIV/Aids é atravessado por processos de estigmatização que definem, de forma simbólica, o que deve ou não ser aceito como normalidade pela sociedade. Esses “territórios de normalidade” compreendem um conjunto de padrões ou estereótipos que são impostos culturalmente e que os indivíduos, ao ultrapassá-los, podem sofrer um processo de exclusão social permeado de acusação, rejeição e adoção de medidas punitivas dentro do grupo. Os territórios de normalidade são, por assim dizer, opostos as ‘zonas de singularidade’, pois estas delimitam o que há de radicalmente próprio no sujeito.
Autores acrescentam que entre a normalidade e a singularidade individual, pode-se levantar uma “zona de comunidade”, ou seja, um espaço potencial que estabelece uma conexão entre as pessoas, levando ao reconhecimento do que há em comum entre elas. Assim, a zona de comunidade é ao mesmo tempo, causa e efeito do sentimento de confiança, sendo análogo ao que Donald Winnicott denomina como o território comum entre mãe e bebê.
Os avanços terapêuticos e as novas pesquisas na área possibilitaram que a concepção de letalidade patológica fosse fortemente modificada e relativizada, já existindo inclusive, casos de remissão permanente da doença, conhecido como “O paciente de Berlim” (Correia, 2018). Assim, o sucesso dos medicamentos retrovirais também acarretou melhores tratamentos e o aumento da expectativa de vida. Entretanto, em decorrência da longevidade tornou-se observável o tropismo que o vírus HIV faz na direção do Sistema Nervoso Central (SNC), evidenciando um denominador comum de afetação neurológica: a Neuroaids. Sobre essa ocorrência, os especialistas destacam que:
“A ação do HIV no sistema nervoso central através da infecção das células cerebrais e pela produção de substâncias neurotóxicas pode levar a um quadro conhecido por Desordens Neurocognitivas Associadas ao HIV ou HAND (do inglês, HIV- Associated Neurocognitive Disorders) que representa um grupo de síndromes que cursam com graus variados de perdas cognitivas e funcionais em indivíduos infectados pelo HIV; tais desordens vão desde danos neuropsicológicos assintomáticos até a demência” Schiavotelo (2016, p. 18).
"As intercorrências neurológicas podem ocorrer em qualquer momento desde o início da infecção; isso pode ser explicado pelo vírus ser neurotrópico e o sistema nervoso central um “santuário” para ele."
As intercorrências neurológicas podem ocorrer em qualquer momento desde o início da infecção; isso pode ser explicado pelo vírus ser neurotrópico e o sistema nervoso central um “santuário” para ele. Essa proteção que o vírus encontra no SNC, associada à dificuldade quanto ao uso das medicações problematizam o tratamento, facilitando tais afecções. Desta maneira, as manifestações neurológicas acometem de 40 a 70% dos pacientes portadores do HIV no curso da sua infecção, e os estudos de necropsia, apontam sua ocorrência em mais de 90% dos casos.
Neste cenário, os profissionais de saúde se deparam com uma importante tarefa, que é a de promover melhorias no manejo da informação para a adesão ao tratamento e, com isso, reduzir os danos da síndrome. Sobre esses aspectos relacionais é preciso humanizar o contato entre profissional e usuário, sendo a comunicação de más notícias um princípio a ser desenvolvido para alcançar tal objetivo. As más notícias desencadeiam nos pacientes sentimentos de negação, culpa, raiva e, por sua vez, os profissionais, emissários da informação, sentem medo, ansiedade, desconforto e desorientação, além de apresentarem receio sobre as reações do paciente. Assim, a revelação diagnóstica passa a exigir habilidades estratégicas, que visam acolher e informar os pacientes, promovendo qualidade de vida. Essa interlocução é de suma importância por afetar diretamente o modo como o sujeito recebe o diagnóstico, como vai lidar com a notícia e como vai buscar o melhor para si, impactando significativamente no tratamento.
A revelação diagnóstica na testagem para o vírus HIV inicia um atravessamento subjetivo, visto como um marco divisor na vida dos pacientes, pois ao receber este diagnóstico, alguns sentimentos ambivalentes são despertados. Moreno e Reis (2013, p. 593) afirmam que no atendimento inicial “deve-se criar condições para prover atitude de escuta, respeitar o sistema de crenças dos indivíduos, contribuir para que eles tenham confiança nos próprios recursos in- ternos e, assim, tomar suas decisões na vida”.
De acordo com Winnicott (1975 p.23) o profissional precisa suportar a situação como se fosse uma mãe suficientemente boa, compreendendo esta como um ambiente provedor que é “aquele que efetua uma adaptação ativa às necessidades do sujeito/bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e tolerar os resultados da frustração”. É importante salientar que essa função suficientemente boa pode ser exercida por qualquer cuidador primário, um pai, uma irmã, uma avó e, nessa cadeia de significação, os profissionais de saúde encontram uma importante função de cuidado e maternagem.
Comunicação de más notícias e suas implicações
O encontro intersubjetivo dos indivíduos é um processo que envolve o compartilhamento de mensagens, verbais e não verbais. No contexto de cuidados em saúde, este processo envolve grande interação de concepções, informações, atitudes e emoções daqueles que se comunicam. Nas décadas 1980 e 1990, a comunicação em saúde estava alicerçada sob as bases filosóficas do modelo biomédico, este processo se caracterizava por uma transmissão de informações no sentido daquele que detém o conhecimento - emissor, geralmente, um médico - para outro indivíduo - receptor, geralmente um paciente - que não possuía o mesmo papel hierárquico.
A comunicação de más notícias é um grande desafio para os profissionais em todos os níveis do sistema, seja na atenção primária, secundária ou terciária; entretanto, devido às circunstâncias institucionais, o processo de comunicação hospitalar acaba por ser ainda mais delicado, pois o adoecimento e a hospitalização já são por si mesmos dolorosos e angustiantes. Esta especificidade exige dos profissionais diferentes habilidades para se comunicar, levando em consideração a evolução, o prognóstico da doença e a sua relação com a morte. Dessa forma, comunicar más notícias é uma das tarefas mais difíceis e importantes com que se deparam as equipes de saúde e, muitos profissionais ainda não possuem preparo suficiente para lidar com situações de tamanha delicadeza, sendo a capacitação dos recursos humanos um importante dispositivo para atenuar os conflitos envolvidos no cotidiano das unidades de tratamento.
Neste contexto comunicacional Baile et al. (2000) criaram o protocolo SPIKES para ajudar os profissionais de saúde que apresentavam dificuldades em ‘comunicar más notícias’, compreendendo uma má notícia como “qualquer informação que afeta seriamente e de forma adversa a visão de um indivíduo sobre o seu futuro”. Assim, o protocolo contribui para facilitar a comunicação e atenuar os impactos diagnósticos, consistindo em quatro princípios: recolher informações dos pacientes, transmitir informações, proporcionar suporte aos pacientes e promover adesão ao tratamento. Esses princípios são distribuídos em seis etapas, que identificadas pela letra inicial de cada passo, dão origem ao nome do protocolo. Assim, as etapas seguem à seguinte disposição:
S – Setting up the interview: preparando-se para o encontro; P – Perception: percebendo o paciente; I – Invitation: convidando-o para o diálogo; K – Knowledge: transmitindo as informações; E – Emotions: permitindo e expressando emoções; S – Strategy and Summary: resumindo e organizando estratégias.
Neste contexto, para além dos protocolos, o profissional necessita de liberdade, tranquilidade, boa formação e cuidado, pois ao comunicar uma notícia difícil ele ocupa um lugar de vetor em saúde, possuindo uma grande função de ambiente facilitador, devendo garantir uma atmosfera de confiança, sigilo e de respeito ao usuário que ali está para receber a revelação diagnóstica. A qualificação deste encontro passa por momentos que abarcam um contexto acolhedor, o respeito às diferenças, um movimento empático e os conhecimentos vigentes em saúde num enquadramento de suporte humanizado.
Leia a segunda parte do artigo: O resultado positivo de HIV/Aids e seus impactos psicossociais no paciente
Leia o artigo científico na íntegra: https://www5.bahiana.edu.br/index.php/psicologia/article/view/2833