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No século XIX o debate racial tornou-se relevante para a elite intelectual da época que acreditava que a eugenia seria a higiene social em prol do progresso do país. No Brasil o Renato Kehl foi o marco responsável pelo movimento eugenista do Brasil, implantando a ideia de segregação de deficientes, esterilização dos ‘anormais e criminosos’ e educação eugênica obrigatória nas escolas. Seus apoiantes, que representavam a elite branca brasileira, eram Júlio de Mesquita, dono do jornal O Estado de S. Paulo; Arnaldo Vieira de Carvalho, fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo e Monteiro Lobato, escritor influente no Brasil. A culturalização da inferioridade negra se disseminou, junto a ele a miscigenação do homem negro como solução para evolução da raça escrava (De Almeida, 2018).
Esse período é marcado pela história como de grande desenvolvimento, momento de consolidação do capital monopolista e da urbanização do Brasil, o que compreende a estratégias para impulsionar o mercado agrícola, com o fortalecimento do mercado consumidor, criação de institutos de apoio à produção agrícola e implantação de estabelecimentos industriais (Silva, 2011). Durante o período de expansão do ciclo econômico, os imigrantes e suas famílias foram incentivados e se beneficiaram do processo migratório para os centros urbanos, com a promessa de melhoria de vida em troca de horas de trabalho e mão de obra barata, melhorando em termos de renda e de padrão de vida dos seus patrões, nomeadamente donos das indústrias em acensão.
Na história do mundo, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Entretanto, a proibição não refletiu em desescravização, mas sim, numa nova forma de relação mercantil precarizada (Pinto & Ferreira, 2014). Figura-se a natureza humana do escravo como uma sombra personificada até a sociedade pós-moderna. Os escravos perderam seu lar, direito ao seus corpo e status políticos. Isso refletiu em morte social e a subaltenalização da humanidade quando tratada ao negro. Seu trabalho manteve-se como necessário, por essa razão foi mantido vivo, mas como passivo de horrores, crueldade e desumanidade (Mbembe, 2016). Em 1890 ocorre a criação do decreto legislativo - Código Penal – Decreto nº 847, de 11, a lei que estereotipava os negros e criminalizava a capoeira. Nessa lei, os negros que não tivessem residência comprovada seriam presos por crime de vadiagem. A raça é crucial para encadeamento por via da lei, somado a ela a proibição de casamentos mistos, a esterilização forçada e até mesmo o extermínio dos povos libertos. Opressão bio-politico-social, seguida de extrema vulnerabilidade e pobreza foram características experimentadas pela liberdade (Mbembe, 2016).
Em 1891 a educação era um direito de pessoas livre, entretanto, desde que os libertos tivessem o total de rendimentos/posses no valor de oitocentos mil réis. Adentramos no seculo XX com o Estado Brasileiro assegurando direitos apenas aos que possuíam estatuto de homem livre, representando pela população branca, de descendência europeia e que possuía papel social pertencente a burguesia da época. Os de descendência da África não tinham direito, eram lhes negado o acesso e atribuíam-lhes a marginalização como consequência. Um ciclo estrutural de exclusão em que os analfabetos em sua maioria eram negros, que, consequentemente, também não possuíam o direito de votar (Veiga, 2008). Garantindo-lhes o lugar de vulnerabilidade social e miséria.
Em 1904 ocorreu a reforma urbana no Rio de Janeiro, que consistia em leis de incentivos fiscais, que garantiam acensão da elite agrícola em oposto, tal reforma tinha como objetivo expulsar as populações mais pobres dos centros da cidade (Cantisano, 2016). A escravidão ensinou que a vida do escravo é marcada sem vida. O terror colonial que criava senzalas, evoluiu-se bio-politicamente pelo estado em parceria com a sociedade para deslocar os negros e pobres, porém dessa vez livres, para os morros e favelas. Uma desigual vida livre é estabelecida junto com a desigualdade do poder sobre a vida (Mbembe, 2016).
Em 1968 é criada a primeira lei nº 5.465, de cotas destinadas as elites agricultoras a ingressarem no ensino técnico e universidades. Lei que reservava 50% das vagas para a burguesia agrícola e 30% para a elite urbana de acesso ao ensino superior e técnico (Brasil, 1968). Que nesse caso, era a população branca, que teve direito de educação básica pela lei número 1 da educação e lei nº 601 de incentivo a terra. Em 1988 a República Federativa do Brasil cria a constituição que temos até os dias atuais propagando a democracia, trazendo consigo os ideais de liberdade, universalidade, igualdade e equidade dos direitos humanos. Entretanto, democracia para quem? Todos usufruem dos mesmos direitos? A liberdade é de tod(ax)?
De acordo Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), cerca de 124 pessoas transexual foram assassinadas no Brasil em 2019, 80% representa a população negra e feminina. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019) o Brasil tem 11,3 milhões de analfabetos, 48% da população brasileira não possui saneamento básico (Brasil, 2019) e 2,5%, cerca de 5,2 milhões de pessoas passaram fome no Brasil (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura -FAO, 2019)
"De acordo Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), cerca de 124 pessoas transexual foram assassinadas no Brasil em 2019, 80% representa a população negra e feminina. "
Um ciclo de repetição criada no Brasil desde a colonização, colocando sob o homem a escolha de alienar-se ao sistema e também se alimentar no jogo de: para sobreviver é preciso lucrar/produzir/habitar nas desigualdades. Em que a logica de vida económica da supervalorização do dinheiro torna-se dissolvida, em que o financeiro assume o simbólico do poder e o não ter o dinheiro/caracteres de ser/pertencer a minoria, garante-lhes o lugar de passível de ser violentado. incitando a concentração de capital de forma a criar desigualdades sociais, cultura necropolítica-assassina-neocolonial. Incutindo o mercantilismo de forma a comercializar a vida e silenciar a morte. Em detrimento da vida de populações especificas/invisibilizadas/excluídas abjetas como não mais humanas. Tal jogo equilibra de maneira perversa as sociedades e estabelecem os formatos de relações, do ter e o não ter, ser e não ser, pertencer e não pertencer, garantindo o sujeito do direito ou o não cidadão – reforçando, na sociedade, o corpo possível de violência, extermínio -novas formas da relação de escravo e do senhor.
Haja vista, do macro ao microssistema aprendemos com políticas de fomento do enriquecimento pessoal por via de exploração/corrupção em detrimento do sucateamento/desmonte das políticas publicas. Do micro ao macrossistema nos silenciamos e não nos responsabilizamos com as micropolíticas de extermínio socio-politico-subjetivo. Desassistindo as populações menos favorecidas, corpos abjetos, que não se beneficiam das políticas de direitos humanos que asseguram/proteção da vida.
Dessa forma, o presente trabalho se propõe a discutir o racismo no Brasil enquanto poder socio-histórico que produz/se produz, enquanto sistema-cultura-relações sociais. O racismo no brasil é um fenômeno complexo e multicausal, formado por múltiplos elementos estruturantes - com efeitos de subjetivação que sustentam formas de vida coloniais e evolui-se modernamente com o sistema capitalista-neoliberal num ciclo de produção de desigualdades.
O assujeitamento do humano em detrimento do sistema evoluiu-se a passos tão largos no mundo da urgência, do extremismo e das violências contra as minorias. O pensamento colonial se apresenta em disseminadora atemporal elaborada para gerar, estruturar, explorar, manter, conservar e concentrar privilégios de um determinado grupo racial em detrimento das iniquidades dos demais, que são alvos de contínuos investimentos pautados na violência, promoção de adoecimento e morte em multidimensões em sociedade (Dos Santos, 2020; Moura, 1994).
A escravização da população negra e indígena, produziu uma espiral de desumanização, desvalorização e eliminação relacional-estrutural-simbólica-produtiva e subjetiva que causa impactos na ancestralidade, articulação sociopolítica, demonstrando os efeitos de exclusão, marginalização e assassinatos dos corpos negros. Colocando em causa a vida, fruto do colonialismo/biopolítica eugenista de branqueamento que mata as pessoas pretas, pobres e em sua maioria moradoras das grandes favelas,
Não se restringindo ao étnico-racial, mas, sobretudo, se amplia de forma socio-político-cultural produzindo 32,9% de pessoas negras abaixo da linha da pobreza, 43,4% de taxa de assassinatos no Brasil para não brancos por 100 mil habitantes e 62% da população negra/oriunda da favela tem mais chance de adoecer e morrer pelo novo coronavírus no Brasil do que a população branca representando 32% (IBGE, 2019; Abril, 2020). A partir dessa reflexão espera-se que se criem tomada de consciência - conscientização, e, com isso, se operem mudanças na esperança de construir consciência transformadora, equitativa e empática.